Em um disco de 1969 Gilberto Gil cantava os contundentes versos: "a cultura, a civilização: elas que se danem, ou não". O paroxismo da frase aponta tanto para o advento iminente do princípio da barbárie contemporânea quanto contém dentro de si a potência necessária para superá-la numa afirmação anárquica mas positiva de uma outra possibilidade de cultura e civilização. Não deixa de ser irônico que o mesmo autor da frase, mais de quarenta anos depois, assumiria o posto de Ministro da Cultura.
Sintomático que um dos artífices do tropicalismo, o principal movimento estético de vanguarda no Brasil na segunda metade do século XX tenha se embrenhado na política. Gil já havia dado mostras de sua disposição para o gabinete e o palanque em pelo menos duas ocasiões, quando assumiu como vereador em Salvador e depois como candidato a prefeito da capital baiana. Mas era ainda um laboratório do que estava por vir.
Incorporando elementos do movimento contra-cultural, uma das propostas mais caras ao tropicalismo foi, em última instância, a quebra de barreiras entre arte e política, entre intervenção social e cultura. Nesse sentido pode-se dizer que a realização do projeto tropicalista em seu sentido mais amplo, por mais desdobramentos que possa ter gerado, não estaria completa sem uma intervenção efetiva, ampla e incisiva no ambiente político-cultural do país.
O Ministério da Cultura por sua vez, a instância responsável pela elaboração e execução das políticas públicas para o setor no âmbito federal, sempre teve uma existência inexpressiva, primeiro vinculado ao Ministério da Educação, depois rebaixado a secretaria, por fim uma pasta sem recursos suficientes para garantir à população o direito constitucional de acesso aos bens e produtos culturais do país. Mais do que isso, um ministério que se escorou num único mecanismo de ação delegando a responsabilidade do fomento ao mercado e favorecendo grupos e agentes na base da política de balcão. Reflexo de um pensamento elitista que sempre pautou as políticas – ou a falta delas – para o setor.
Por tudo isso a nomeação de Gilberto Gil para o cargo de Ministro da Cultura equivale aproximadamente, na relação direta e proporcional entre as hierarquias governamentais, à própria eleição do presidente Lula. A dimensão simbólica do fato só encontra paralelo na história recente com a nomeação de Villa-Lobos para a direção da antiga Superintendência Educacional e Artística na era Vargas. Mas o gesto aqui é ainda mais amplo e o desafio mais complexo.
Em Salvador me disseram que Gil teria recusado o primeiro convite de Lula. O futuro ministro então ligou para o amigo e conselheiro Antônio Risério. Antropólogo especialista em cultura africana no Brasil, desafeto de ACM, referência intelectual dos tropicalistas, Risério teria dito em resposta: "vai ficar na Senzala, não vai entrar na Casa Grande?". O sarcasmo da analogia em tom de desafio diz muito sobre as relações entre alta e baixa cultura e a disparidade nas relações de produção e consumo entre as diferentes classes sociais do país.
E se Villa-Lobos vislumbrou a realização de um projeto cultural de amplitude para o país com a implantação do canto orfeônico nas escolas públicas brasileiras durante a ditadura Vargas nos anos 40, o projeto de Gil propunha uma mudança de paradigma, uma inversão na forma de pensar e perceber a cultura brasileira. E mais, transformar essa visão em política de Estado! Não era pouco, mas de certa forma o embrião já estava todo ali no discurso de posse. Precisávamos definitivamente encarar a cultura como um fator estratégico para o desenvolvimento do país.
O fato é que o tema nunca esteve, até então, na pauta das discussões políticas com a devida importância. A despeito do acesso à Cultura ser um direito previsto na Constituição Brasileira de 1988 e dever ser assegurado a todos os cidadãos pelo Estado Brasileiro. A despeito ainda dos Direitos Culturais estarem previstos expressamente na Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, como fator de singularizarão da pessoa humana e comporem juntamente com os Pactos Internacionais de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Econômicos Sociais e Culturais a Carta das Nações Unidas, da qual o Brasil é signatário com posição ratificada em 1992. Para além do caráter simbólico e de sua importância para a formação da identidade brasileira, a cultura tem se mostrado como fator fundamental de desenvolvimento econômico gerador de emprego e renda. Acabamos de passar por uma crise financeira mundial no momento em que outra já se anuncia e o setor cultural foi um dos que mais demonstrou capacidade de reação e superação. Não é por acaso que é o setor da economia que mais cresce no mundo todo, de acordo com dados recentes do Banco Mundial.
Gil assume o Ministério em 2002 e parte de um germe plantado por intelectuais orgânicos – aqueles que colocam a mão na massa encefálica – ligados ao núcleo expandido do tropicalismo como Antônio Risério, Rogério Duarte, Wally Salomão, Jorge Mautner e o próprio Juca Ferreira conseguindo a adesão imediata de jovens criativos e bem preparados vindos de diversas partes do país que se entusiasmaram com a idéia. Entre eles o próprio Alfredo Manevy, atual Secretário Executivo recrutado das fileiras da crítica cinematográfica mais política e aguerrida.
Naquela ocasião não havia um projeto consistente do PT para o setor cultural. Isso fica claro ao analisarmos as propostas apresentadas pelo partido tanto nas eleições daquele ano quanto nas anteriores. Assim como o PT nenhum outro partido jamais apresentou propostas minimamente fundamentadas para o setor simplesmente porque jamais perceberam a dimensão do espectro cultural. Basta passar o olho nos programas de governo lançados pelos candidatos à presidência. Todos apresentaram, em linhas gerais, uma continuidade das políticas culturais implementadas na atual gestão, com ampliação dos Pontos de Cultura e revisão dos mecanismos de investimento público no setor.
A idéia-conceito que sustentou a implantação do Pontos de Cultura dá a dimensão da mudança paradigmática operada nesse período. Ao promover o encontro inusitado da simplicidade radical de uma tradição oriental secular com uma disciplina humanista relativamente recente do pensamento ocidental foi realizada uma síntese poderosa capaz de promover um movimento sísmico no Brasil profundo. O Do-in antropológico proposto pelo então Ministro em seu discurso inaugural, sugerindo uma massagem nos pontos nevrálgicos do país de forma a possibilitar que a energia dessas veias e artérias culturais ramificadas por todo o território fluíssem resultou em mais de cinco mil pontos de cultura espalhados por todo o país e uma tecnologia social que virou modelo e hoje é exportada para todo o mundo.
Mas não foi só isso, durante esses anos houve uma intensa movimentação, tanto em listas virtuais quanto em encontros presenciais de dezenas de milhares de agentes, entre eles artistas, produtores, pesquisadores, gestores, jornalistas e cidadãos em geral interessados em discutir políticas públicas para a cultura. Foram organizados fóruns onde se discutiu exaustivamente cada ponto considerado importante nas respectivas áreas. Mais do que simples consultas, as conferência de cultura se transformaram numa demonstração vigorosa do exercício democrático com a capacidade de anular, por si, qualquer possibilidade de clientelismo de um lado e de dirigismo por outro. Isso em cada setor, mas também transversalmente. A criação desse canal de interlocução inédito da sociedade civil com o governo por sua vez, impulsionou a criação de grupos, coletivos, associações e cooperativas em todos os cantos, que vieram respaldar e dar legitimidade aos fóruns. A fermentação dessa massa gigantesca resultou no Plano Nacional de Cultura, que por sua vez integra o Sistema Nacional de Cultura, com a proposta de implementação de ações coordenadas com ramificação nas esferas federais, estaduais e municipais.
Outro movimento importante foi a correção das distorções da famigerada Lei Rouanet com a criação do Procultura – Programa Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura aprovado recentemente no Congresso Nacional. Um dos trunfos do programa é a criação de fundos setoriais – uma demanda antiga da classe artística – geridos a partir de colegiados e comitês formados por representantes da sociedade civil e repasse de verbas através de editais públicos com critérios claros e transparentes.
Vale menção ainda a consulta pública para revisão da Lei dos Direitos Autorais e toda a cruzada do Ministério da Cultura a favor da cultura livre, da ampliação do acesso à banda larga, a implantação do Vale Cultura, que deverá promover o acesso de uma parcela significativa da população brasileira a produtos e bens culturais e a articulação da Proposta de Emenda à Constituição n° 150, de 2003, a PEC da Cultura, com elevação dos patamares orçamentários nas três esferas do poder.
Claro que ainda falta muita coisa! Ressentimos por exemplo a inexistência de indicares para um diagnóstico mais preciso sobre as atividades culturais no país, que movimentam milhões mas estão pautadas em sua grande maioria pela informalidade; a revisão do enquadramento jurídico e dos encargos tributários para as empresas e profissionais do setor artístico; a reestruturação da FUNARTE e a criação das agências para cada setor; enfim, ainda há muito trabalho pela frente.
Mesmo as críticas tem sido absorvidas e debatidas publicamente em várias ocasiões. Muitas delas, cabe dizer, vindas de lobbies e grupos que viram seus interesses ameaçados, que tentaram desqualificar as propostas a priori com receio de que as mudanças – principalmente a revisão da Lei Rouanet e a reforma da Lei do Direito Autoral – interferissem nos lucros e privilégios adquiridos durante anos de limbo. Mas, de todas as críticas, uma ganhou destaque na imprensa e merece atenção especial aqui pela importância do interlocutor e sua posição estratégica em meio ao processo como um todo. Caetano Veloso foi um dos críticos mais contumazes da gestão, manifestando publicamente seu descontentamento com os rumos das políticas do Ministério da Cultura e com as posições defendidas pelo ministro. Mas foi o próprio Caetano quem declarou certa vez que "Rogério Duarte disse numa louca conversa em 68 que Gil era o profeta e eu apenas o seu apóstolo." O caráter profético da máxima ganha contornos inusitados quarenta anos depois. O fato é que o próprio Caetano reconheceu, ao fim do mandato do colega de Tropicália e importância de sua passagem pelo Ministério da Cultura, a projeção e destaque alcançados por um Ministério antes invisível. Mas no momento em que Caetano defende a liberação do iTunes para venda de músicas online no Brasil em seu artigo semanal no jornal O Globo ele efetivamente se torna um apóstolo de Gil na sua cruzada pela cultura digital. Gil foi o primeiro artista do primeiro escalão a perceber as mudanças na estrutura de funcionamento da indústria fonográfica e investir num novo modelo de negócios. Disponibilizou arquivos para download gratuito e defendeu a flexibilização do direito autoral; fez as primeiras transmissões ao vivo pela internet e foi também pioneiro na utilização de plataformas 2.0; incorporou os princípios do software livre e da economia criativa não só ao seu discurso mas à sua própria obra.Mas há pelo menos mais dois fatos que chamam a atenção neste momento. O primeiro é a disputa, até então inédita, pelo cargo de Ministro da Cultura. Eu já acompanhei pela imprensa a citação de pelo ao menos duas dezenas de nomes cogitados para assumir a pasta no novo governo. Até muito pouco tempo não havia o menor interesse, nenhum partido disputava a cultura, era perfumaria, moeda de troco na barganha dos ministérios - como infelizmente ainda acontece em muitas secretarias e fundações em municípios e até estados.
Outro fato interessante é que a partir de 2011 o ensino de música volta a ser obrigatório nas escolas brasileiras, em cumprimento à lei sancionada em 2008. Reivindicação legítima e urgente da classe musical, o ensino de música nas escolas deve exercer a médio e longo prazo um impacto imenso no perfil dos consumidores e na qualidade da produção de um país que já é reconhecido como um dos mais musicais do planeta. É inevitável pensar no arco que vai do canto orfeônico nos anos 40, passa pela reformulação curricular durante a ditadura militar – que excluiu o ensino de música e reduziu a carga-horária e a importância das disciplinas ligadas às artes e humanidades em geral -, e o retorno do ensino de música ao currículo obrigatório. Nesse intervalo entre a atuação de Villa-Lobos e a gestão de Gilberto Gil / Juca Ferreira a cultura parece ter assumido uma dimensão política até então inimaginável.
Graças a essa nova configuração estamos a caminho de realizar em ato, nos próximos anos, as potencialidades do Brasil transformando-o em referência na produção e no acesso a uma das matérias mais sofisticadas do intelecto humano, que é a arte e a cultura. Agora portanto é bola pra frente, não é possível mais recuar!
Makely Ka é compositor, lançou os discos
Autófago e Danaide e o livro Ego Excêntrico e atualmente
é presidente da COMUM (Cooperativa da Música de Minas).
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