Maestro José Siqueira [foto]
Heitor Villa-Lobos atravessou o século passado reconhecido como o grande nome da nossa música clássica e, sem dúvida, um dos grandes protagonistas da nossa História. Foi o homem que se embrenhou pelo folclore para dar cores brasileiras a uma produção musical essencialmente européia; que introduziu o canto orfeônico nas escolas públicas promovendo recitais cívicos espetaculares.
Um outro maestro, o paraibano José Siqueira, guardando as devidas proporções, também foi uma personalidade atuante do seu tempo. Criou a Orquestra Sinfônica Brasileira (OSB), a Orquestra de Câmara do Brasil, a Ordem dos Músicos (OMB). E mais: escreveu livros didáticos, compôs para todos os instrumentos e se aventurou por um terreno perigoso na época, o das influências africanas.
Empreendedor, visionário e dono de grande personalidade, Siqueira pagou o preço de ser um homem de esquerda que atravessou duas ditaduras e, por isso, foi alijado da História. Proibido de lecionar, gravar, reger, acabou encontrando abrigo na antiga União Soviética.
Essa história, ao mesmo tempo heróica e trágica, começa a ser revisitada agora, no ano em que Siqueira faria 100 anos, por um acidente do destino. Ao casar com Mirella, neta do maestro, o engenheiro da Light Ewerton Vital descobriu que sua mulher pagava mensalmente o aluguel de uma pequena sala no Centro. Perguntada sobre o que tinha ali, ela respondeu: "As coisas do meu avô", contando, em seguida, quem era o tal avô.
Vital se encantou com a história e procurou a Fundação Orquestra Sinfônica Brasileira, que indicou o seu coordenador educacional, Leonardo Sá, para, juntamente com a família, reorganizar e restaurar o precioso acervo que inclui centenas de partituras, fitas e mais fitas de rolo, inclusive com os registros de discos gravados em Moscou, livros, fotos e até peças de vestuário.
- Conheço um pouco de música mas não conhecia o maestro José Siqueira. Assim como percebo hoje, infelizmente, que as gerações mais novas de músicos também desconhecem sua história e sua obra, conta Vital.
- Quando chegou ao Rio de Janeiro, tornou-se um organizador da vida cultural com sua percepção social e política progressista. Era também advogado e jornalista. Escrevia artigos regulares para o "Correio da Manhã" que hoje, se revistos, retratam todo o painel musical e social a partir dos anos 1930, conta Sá.
- O curioso é que, mesmo sendo um homem de esquerda, cria a OSB nos moldes capitalistas, a primeira orquestra independente, profissional e privada do Brasil com a ajuda dos principais financiadores da arte brasileira como Roberto Marinho e a família Guinle.
OSB abrigou músicos fugidos da guerra
Ao criar a orquestra e a OMB, Siqueira, além de mostrar sua preocupação com a união e a organização da classe, também mostrou-se interessado na qualificação profissional.
- A OSB foi criada em 1940, no periodo da Segunda Guerra Mundial, quando muitos músicos europeus vieram fugidos para o Brasil, principalmente para o Rio, que era a capital. O maestro, ao criar a orquestra, além de trabalhar para a união da classe, vislumbrou nesses músicos potenciais professores para uma geração de músicos, lembra Leonardo Sá.
Em um período em que o negro ainda era bastante discriminado e sua contribuição para a nossa cultura muito pouco reconhecida, José Siqueira criou uma série de peças orquestrais como o bailado "Senzala", a cantata negra "Xangô", gravada em Paris, a suíte "Carnaval carioca" e, para Leonardo Sá, sua obra-referência: "Candomblé".
- Ele passou alguns meses freqüentando um terreiro em Salvador. Escreveu esse oratório dando sua visão musical do ritual. A gravação feita em Moscou é sensacional, conta.
- Essa peça tem a marca da sua irreverência e é ousada para a época. Pegou uma forma católica de expressão para falar de um ritual afro-brasileiro. Mas juntava a essa temática seus conhecimentos sobre compositores modernos como Stravinsky.
A intenção da família do maestro e da Fundação OSB é criar o Instituto José Siqueira para recuperar, conservar e tornar acessível o acervo; divulgar sua obra; reeditar seus livros; encomendar uma biografia e difundir a prática musical em parcerias com instituições e comunidades.
Leonardo Sá acredita que, dessa forma, a OSB estará fazendo as pazes com seu mentor, que por questões internas ficou pouco tempo por lá, e, de alguma maneira, corrigindo uma grande injustiça da nossa História.
- Os não acomodados são sempre polêmicos. Ele pagou o preço alto de ser um visionário e lutar por suas convicções.
Figura de destaque na vida musical do Rio de Janeiro
Compositor foi influenciado pela escola nacionalista
por Luiz Paulo Horta
Bom músico, José Siqueira tinha duas marcas características: um domínio da técnica que fez dele um de nossos melhores orquestradores; e uma disposição combativa que o tornou figura de destaque na vida musical do Rio de Janeiro. A ele se deve, por exemplo, boa parte do esforço que resultou na criação (em 1940) da Orquestra Sinfônica Brasileira.
Esse novo organismo sinfônico beneficiou-se, logo no início, do talento e da competência de um grande regente húngaro - Szenkar - que a Segunda Guerra Mundial levara a emigrar para o Brasil; mas Siqueira foi o batalhador incansável que tornou possíveis os grandes vôos de Szenkar.
Essa persistência pode ter vindo das suas origens humildes no sertão da Paraíba. Nascido em Conceição, o jovem Siqueira viveu tão isolado do mundo que, até os 20 anos de idade, nunca vira um piano. Seu pai era mestre de banda, e ensinou-o a tocar diversos instrumentos, como o saxofone e o trompete.
Siqueira chegou a um Rio ainda capital da República como integrante das tropas que tinham sido recrutadas para combater a Coluna Prestes.
Aqui ficou, e estudou no Instituto Nacional de Música. Assim foi adquirindo os conhecimentos teóricos que fariam dele um dos professores mais requisitados no Rio de Janeiro dos anos 40.
Casado com a soprano Alice Ribeiro, teve em seguida uma fase de muitas viagens internacionais, apresentando a música brasileira um pouco por toda parte. Como compositor, é dos que revelam com mais força a influência da escola nacionalista. Tinha uma paixão absorvente pelo folclore, que utilizou tanto em obras pequenas como em vastos oratórios, às vezes um pouco bombásticos. Mas, com o passar dos anos, foi refinando o seu trabalho criativo, deixando, por exemplo, música de câmara de excelente qualidade.
* Fonte: O Globo - publicado em 6 de fevereiro de 2007
>>> Indicação de leitura: Paulo Sarkis
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